terça-feira, 21 de novembro de 2023

Matança Asseada



Entardecia morrinhenta
A quinta ociosa de outono
Com cheiro de dor violenta
E fé de um qualquer abono.

A besta sem noção de existir
Olhava o firmamento cinzento
Qual faca haveria de vir
Exorcizar o sangue barrento.

Porque choras Ana Maria?
É destino do animal.
«Quem dera neste Natal
Houvesse amnistia.»

Burro, besta pior que a outra,
Acudi-o no sacrifício.
Chegasse então o solstício
Para poder celebrar.

Dei banho ao suíno,
Sujo da própria lama
Com a que fez a sua cama
Nauseabunda de cretino.

Limpei-lhe os olhos para que se visse
Fugiu do espelho por meninice.
Mas aceitou ser menos porco e mais homem
No fim-de-ciclo dos que comem.

Eu que mal de mim sei
Ensinei-o de si
Ornamentando-o de rei
O melhor que consegui.

Empiriquitou-se a gorda besta,
Fugindo sempre do espelho,
Fingindo tomar de conselho
Ser um homem sem sesta.

Tremenda natureza
Que tarda mas regressa
Fez da nova avareza
Uma ponta solta com pressa.

As vestes feitas aquém da ponta
Começaram a dar de si
Avisando, o Rei, sem conta
Que a nudez vinha aí.

Nos caminhos apertados
Que o porco-rei percorria
Ramos e cardos havia
Perigosos de tão sossegados.

A verdade manifestou-se
Os caminhos se mais apertaram.
A avareza borrifou-se 
E os cardos a ponta tomaram.

Animado fuso da vergonha
Rodou de forma infernal 
Trazendo de volta a bizonha
Tarde de outono fatal.

Já sem vestes nem noção, que nunca houve,
Passeia um porco que rei-se-acha.
Fitou a lama, hesitante, cheirou, babando, a couve.
Estava consumado, e perdida a tarraxa.

Deixei-o ir, ao seu destino,
Já que de mim não precisava.
E viu-o ir em desatino
Para matança que começava.

Tanto lhe mostrei o espelho
Que me esqueci de o olhar.
Tanto lhe dei o conselho
Que não parei para me escutar.

Agora também sujo, molhado e vivido
Me encontro a repensar.
Usei mais olho e menos ouvido
Julgando poder ajudar.

A minha matança chegará também
Pois vem sempre que se está "velho".
A do porco é a do vintém
E ficar-se a olhar ao espelho.