sexta-feira, 30 de julho de 2021

Mar Seco



Folia em torno de cada pelo arrepiado,
Tão tenso que me dói no passar da camisa,
Depois de ser banhado pelo mar não molhado.
Mar é musa sua e em si navega - em sua secura...
Musa que cantas, assovias nas janelas mal fechadas.
Marinheiros encantados são os medos do som da brisa
Pela janela mal fechada. Aberta... para a noite escura.
Que entrem em ti as ondas-rajadas, as redes armadas,
A esperança de pescar sonhos neste mar que não nos molha.

Água que não tens, não dá de beber à terra, nem aos bichos.
Mas trazes embrulhado, no nada que se empurra,
O passado das coisas, as dores, vitórias esquecidas e cochichos!
Trazes os perfumes das flores beijadas pelas abelhas, de quem temos tanta pena,
E que, sem terem penas, esvoaçam e namoram, sem vergonha, cada flor enquanto fitam outra.
Também tu, mar seco, escondido, esvoaças e fazes voar as, como tu, secas folhas
Para o meio de um Outono teu, castanho, amarelo, e de todas outras cores que não podes ter.
Porque tu não tens cor. És um mar teimoso, incompleto porque não molhas,
Mas senhor porque desprezas a gravidade que te puxa - também a gravidade do que fazes.
É... Tu és um mar irreverente... Descontente consigo mesmo, por te julgares incompetente.
Não é por seres seco que és menos que qualquer outro! Era o que faltava!

Conheci-te na praia em que nasci, e me refugio ainda hoje.
Todos te julgavam mas nem pensavam que todos se banhavam, mais em ti do que no outro.
Namorei-te na Peninha de Sintra, na Bandeira da Boa Viagem.
Invades-me o dia no choupo resistente do vizinho da frente.
«Já chove?» «Não! É o mar que não molha a agitar as folhas do Choupo na sua corrente.»
Abraças-me na minha pequenez enquanto me entras pelas costuras da roupa,
Pelas fissuras da raiva - E refrescas-me, embalas-me, ensinas-me que não é preciso molhar,
Que não preciso ter uma cor, que não é preciso viver num oceano para se ser mar.
Para mim és mar de um mundo todo, leve e barulhento, refrescante e rabugento.

Quem te vai dominar?
Eu não vou, nem tento!
Já te digo, amigo vento:
Tu não molhas mas és mar.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Conversinha fraterna


Espasmos pulmonares desvairados
Irritam as cordas que vocalizam,
Ressoando na cavidade que obedece.
Por vezes palavras - nados inanimados -
Cujo som não soa ao que parece.
Gargalhadas mecanizadas que nos pisam
Enquanto seres pensantes, que aí não somos.
Longas horas de fraternidade bonitinha,
De conteúdo parco e por culpa minha
Que, ao vomitar o vazio da razão,
Passo bela tarde como se não
Sofresse da natureza que dispomos.


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Nudez Primeira



Rodeia-me o tempo, que é redondo
E foge-me o chão em que me escondo.
Cores de um arco-íris cansadas
Já não pintam qualquer história.
Restam-nos as verdades passadas
Sem pitada, a mais, de glória.
 
Olhos e espelhos, desterros meus,
Máquinas loucas de alienação.
Já não sei se fui, se sou ou não, 
Tampouco se virei a ser ilusão.
Tornarei, sem dúvida, à nudez
Inequívoca que se fez
Ao ser não sendo.
Um nada crescendo,
Que muda em espiral na mesma coordenada.
Um tudo que se faz nada,
De um nada que se faz Deus.
  
O tempo achatar-se-á fugitivo,
O chão ter-me-á em seu umbigo.
Não verei a luz, nem suas cores,
Não restará história nem andores.
Mas haverá sempre um retorno
À nudez primeira, sem adorno,
Ao recomeço libertador e primitivo.

domingo, 18 de julho de 2021

Velho Medo


Que estratagema corriqueiro,
O de agir como o primeiro
Iluminado e único da companhia.
É tolo achar o outro assim
Dormitando sobre o bom de mim,
Espelhando o que me arrelia.

Esta realidade aparente,
Anula e condena gente
A ser somente o que alguém quer.
Sem pensar, por um segundo,
Que não há outro alguém no mundo,
Que há outro homem ou mulher.