domingo, 24 de outubro de 2021

Perdão Pagão

Mal que me fazem é cruel
Ante minha perfeição que se pinta.
Temente sou, por isso uso o perdão!
Esquecer é coisa distinta!
Uma coisa é mostrar mel;
Segunda é despir minha ilusão...

Como amar sem passado,
Iniciando uma nova história?
Narciso mato, escudo pesado...
Cavo sua lente que espelha glória.
Ora me vejo nu e descomplexado.

sábado, 23 de outubro de 2021

Deus Assessorado


Querido supervisor,

Escrevo-te enquanto escuto o dilúvio
A acontecer no autoclismo ao lado.
Creio que não é lugar menor do que qualquer outro:
Também tem paredes, janelas, cerâmicas e odores alheios.

Um comunista contou-me que não existias, coitado.
Mal sabe ele que está cheio de razão.
Esse verbo - existir -, como todo o inventado,
É escasso, como é o primeiro do primeiro de João.

Na última carta que te enviei, à qual também não respondeste,
Perguntava-te a respeito dos teus subalternes deprimentes
Que julgam conhecer-te melhor do que eu. Só pode ser fruto deste
Stress pós-nomádico de espacialização e trocas comerciais.
Não é por conhecerem livros escritos por homens como eu,
Que te sabem melhor do que eu te sei.

A vidente de lá de baixo jura que fala com os mortos!
Esta noite volto lá, mas para vê-la laborar - diz que é mais barato.
Hás-de dizer-me o nome do primeiro palhaço que usou
Como moeda de troca o "conhecer-te", o "saber o queres".

Foi esse sacana que inventou a religião. Que nos convenceu
Que era possível desligarmo-nos de ti; que o fizemos;
E que tínhamos de nos religar. A ti?
Nem sabes responder a cartas... Esse aldrabão foi pioneiro.

Agora tens mais tipos de seguidores diferentes do que plásticos no mar.
Diz-me lá: para que queres isso tudo? Gostas? É bonito? É prestigiante?
Um bando de gajos certos, com a verdade no bolso e a mentira na cara,
À batatada pelo domínio da sua mentira sobre as dos outros... Que bonito...

Caeiro - outro que julgava que te conhecia - acertou naquela da
"Religião Universal que só os Homens não têm". O tipo está certo...
Que necessidade tem um gato de se religar a ti? O gato que nunca se desligou...
Que merda somos nós a mais do que o gato para nos conseguirmos desligar de ti?

Por falar em merda... Já tenho as pernas dormentes...
O engenheiro das loiças também não saberia evitar estas coisas?
Deve ser outro que anda a fazer dinheiro com o que não domina...
Vê lá se me respondes, só a dizer se estás bem.
Olha que os políticos que respondem no face estão na moda.

P.S.: Avisa o teu subalterne da paróquia ao lado que já o topei... Ele que se ponha fino!
Prefiro a vidente, é mais cara mas sempre me dá resposta às minhas necessidades.

E.D.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Egos travestidos

Eu sou da cultura! Eu sou do comum!
Eu sou da causa que me engrandece!
Eu sou teatro! Eu sou o número um!
Eu sou do Estado que em mim padece!

Eu sou dos bons! Dos progressistas!
Eu sou de bem, eu sou filantropo!
Desde que hajam fotos e revistas!
Eu sou o que os outros narcisistas
Precisam de ver em mim para estar no topo!

Eu ajudo este, eu ajudo todos!
Eu sou um pobre rico, acumulo a rodos!
Eu sou a terra! Eu sou o sol dos tolos!
Eu sou o dos doces e o dos bolos!
Eu sou o tempo que não tenho para dar.
Eu sou expectativa viúva, sem par.

Venham adorar-me pelo que digo ser!
Venerem-me pelo bonitinho que fabrico!
Endeusem-me os burros sem poder,
Coroem-me com um penico!

Eu sou o que tiver de ser
Para continuar a poder
Viver esta mentira.
Negligência, desprezo e ira 
Ao próximo que não quero servir,
De quem me sirvo, até subir.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Mar Seco



Folia em torno de cada pelo arrepiado,
Tão tenso que me dói no passar da camisa,
Depois de ser banhado pelo mar não molhado.
Mar é musa sua e em si navega - em sua secura...
Musa que cantas, assovias nas janelas mal fechadas.
Marinheiros encantados são os medos do som da brisa
Pela janela mal fechada. Aberta... para a noite escura.
Que entrem em ti as ondas-rajadas, as redes armadas,
A esperança de pescar sonhos neste mar que não nos molha.

Água que não tens, não dá de beber à terra, nem aos bichos.
Mas trazes embrulhado, no nada que se empurra,
O passado das coisas, as dores, vitórias esquecidas e cochichos!
Trazes os perfumes das flores beijadas pelas abelhas, de quem temos tanta pena,
E que, sem terem penas, esvoaçam e namoram, sem vergonha, cada flor enquanto fitam outra.
Também tu, mar seco, escondido, esvoaças e fazes voar as, como tu, secas folhas
Para o meio de um Outono teu, castanho, amarelo, e de todas outras cores que não podes ter.
Porque tu não tens cor. És um mar teimoso, incompleto porque não molhas,
Mas senhor porque desprezas a gravidade que te puxa - também a gravidade do que fazes.
É... Tu és um mar irreverente... Descontente consigo mesmo, por te julgares incompetente.
Não é por seres seco que és menos que qualquer outro! Era o que faltava!

Conheci-te na praia em que nasci, e me refugio ainda hoje.
Todos te julgavam mas nem pensavam que todos se banhavam, mais em ti do que no outro.
Namorei-te na Peninha de Sintra, na Bandeira da Boa Viagem.
Invades-me o dia no choupo resistente do vizinho da frente.
«Já chove?» «Não! É o mar que não molha a agitar as folhas do Choupo na sua corrente.»
Abraças-me na minha pequenez enquanto me entras pelas costuras da roupa,
Pelas fissuras da raiva - E refrescas-me, embalas-me, ensinas-me que não é preciso molhar,
Que não preciso ter uma cor, que não é preciso viver num oceano para se ser mar.
Para mim és mar de um mundo todo, leve e barulhento, refrescante e rabugento.

Quem te vai dominar?
Eu não vou, nem tento!
Já te digo, amigo vento:
Tu não molhas mas és mar.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Conversinha fraterna


Espasmos pulmonares desvairados
Irritam as cordas que vocalizam,
Ressoando na cavidade que obedece.
Por vezes palavras - nados inanimados -
Cujo som não soa ao que parece.
Gargalhadas mecanizadas que nos pisam
Enquanto seres pensantes, que aí não somos.
Longas horas de fraternidade bonitinha,
De conteúdo parco e por culpa minha
Que, ao vomitar o vazio da razão,
Passo bela tarde como se não
Sofresse da natureza que dispomos.


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Nudez Primeira



Rodeia-me o tempo, que é redondo
E foge-me o chão em que me escondo.
Cores de um arco-íris cansadas
Já não pintam qualquer história.
Restam-nos as verdades passadas
Sem pitada, a mais, de glória.
 
Olhos e espelhos, desterros meus,
Máquinas loucas de alienação.
Já não sei se fui, se sou ou não, 
Tampouco se virei a ser ilusão.
Tornarei, sem dúvida, à nudez
Inequívoca que se fez
Ao ser não sendo.
Um nada crescendo,
Que muda em espiral na mesma coordenada.
Um tudo que se faz nada,
De um nada que se faz Deus.
  
O tempo achatar-se-á fugitivo,
O chão ter-me-á em seu umbigo.
Não verei a luz, nem suas cores,
Não restará história nem andores.
Mas haverá sempre um retorno
À nudez primeira, sem adorno,
Ao recomeço libertador e primitivo.

domingo, 18 de julho de 2021

Velho Medo


Que estratagema corriqueiro,
O de agir como o primeiro
Iluminado e único da companhia.
É tolo achar o outro assim
Dormitando sobre o bom de mim,
Espelhando o que me arrelia.

Esta realidade aparente,
Anula e condena gente
A ser somente o que alguém quer.
Sem pensar, por um segundo,
Que não há outro alguém no mundo,
Que há outro homem ou mulher.