sexta-feira, 26 de abril de 2024

PRESIDENTE DA JUNTA CORTA MESADA AO FILHO


O Presidente da Junta da Lusíria tem um filho. O filho trabalha na Freguesia da Tropicónia. O filho pediu ao pai uma cunha no centro de saúde da Lusíria para arranjar dois pares de muletas para as filhas de um casal “amigo” da Tropicónia. O pai (não) não fez um telefonema e (não) não se conseguiram as muletas, apesar da fila de espera de Lusírios. O jornal Lusírio fez um pé de vento. O Presidente da Lusíria desvalorizou.

Depois de pensar um bocadinho o Presidente da Lusíria fez um almoço com jornalistas Tropicónios para dizer que tinha cortado a mesada ao filho. Toda gente gostou muito, então ele decidiu dizer: «Os Lusírios, há 500 anos roubaram galinhas dos Tropicónios, quando a Tropicónia e a Lusíria eram ambas Freguesia da Lusíria. Vamos fazer uma Comissão para mandar dinheiro dos Lusírios para a Tropicónia e compensar a perda das Galinhas e dos Ovos». A Tropicónia vai ter fazer outra Comissão para receber e distribuir o dinheiro Lusírio.

O filho sem mesada vai fazer uma chamada a um casal “amigo” porque ele conhece bem a Lusíria, e até conhece mais ou menos bem o Presidente da Junta Lusíria. Como tal, será o freguês Tropicónio mais qualificado para a Comissão.

Uns anos depois o Presidente da Lusíria já não é Presidente da Junta, nem tem dinheiro para repor a mesada do filho, mas convida o puto para lanchar. O rapazote, todo pimpão diz: «Obrigado pai. O dinheiro deu para as galinhas, para os ovos, para a minha mesada e para uma Playstation».

Um brinde à Lusíria.


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Liberdade tem "Pai Incógnito"


No tempo da outra senhora a figura do “pai incógnito” era uma boa escapatória para liberdades impostas em casamento.

Hoje, em liberdade, parece que a Liberdade é filha de “pai incógnito”. Nestes dias é fácil ficarmos confusos porque o que não faltam são candidatos a Pais da Liberdade.

O barbeiro de 60 anos fazia a barba a Salgueiro Maia desde que o militar usava fraldas. O taxista de 45 anos foi quem convenceu o Zeca a produzir o “Grândola, Vila Morena”. O sindicalista de 63 anos foi quem edificou o Carmo. O escreve-lérias de 71 anos lembra-se de tudo, esteve lá e sem ele nada tinha acontecido. O bêbado da baixa, com 77 anos, é que, coitado, está mal: «Não estava lá, não vi na televisão, devia estar com os copos…».

Com tantos “pais”, quase podemos duvidar da atividade profissional da mãe. Pior, parece que estes pais estiveram lá todos para conceber - o acompanhamento é que não foi o seu forte.

A filha pode ter defeitos e estar a passar por dificuldades. Se nós, os não-pais, não cuidarmos dela, haverá certamente um coveiro de 69 anos que dirá «Esta já está! Agora diz qu’era boa pessoa».

sexta-feira, 22 de março de 2024

50 anos e Filhinhos do Papá


«Alfama não cheira a fado», Março não cheira a Abril, mas Abril cheirará a Junho.


A instabilidade de que tanto se fala é, para já, um agouro. Mas pode vir a ser um sintoma de que as bodas de ouro, que todos celebraremos este ano, podem ser um quinquagésimo aniversário de um casamento de fachada.


O casal é bonito. A esposa é bem mais velha que o noivo que teve. Nas festas estão sempre lindamente, não têm grandes demonstrações de paixão, como parece ser próprio. Fora de casa é um casamento de sonho.


«Quem vive no convento é que sabe o que se passa lá dentro» e nós, os condóminos, sabemos qualquer coisa. Portugal casou com a Democracia, mas os filhos vaidosos que não ficaram com a liderança da assembleia de condomínio, parecem que são filhinhos do papá, e preferem-no à mãe.


A MEMÓRIA da mãe já se confunde com a da tetravó. O mito de ambas foi fundido com alguma habilidade e oportunismo, típicos de quem quer o pai e tem de parecer jogar com as regras da mui nobre senhora mãe.


Normalizou-se a sensação de que é necessária uma maioria absoluta para se governar a casa da mãe Democracia e do pai Portugal. Absoluta era a tua tetravó, pá!


Os filhinhos do papá andam doidinhos a acender velinhas à Santa Criatividade Jurídica, para que se lhes ilumine uma alínea que, com o fermento mediático q.b., se sobreponha ao tio, irmão do pai: o Zé Bom Senso!


Já que falámos em fermento, entremos por aí.


Cada condómino pôs na bacia um ingrediente. Houve quem não tivesse posto ingrediente algum, mas desta vez, como sabemos, foram menos. O cheiro da massa que se fez, bateu e pôs na forma, ainda crua, tem, entre as principais notas, duas muito boas: o perfume da esposa do tio Zé, a Negociação; e o do sogro, Diálogo.


Eu não gosto dos comumente entendidos como filhos da mãe. Mas talvez precisemos que outros filhos-da-mãe, estes filhos desta Mãe, venham a jogo, e honrem a memória da família vasta e respeitável, nestas bodas de ouro que ainda vão a tempo de salvar o casamento.


Bolo cheiroso já há. Faltam os filhos-da-mãe para pô-lo no forno do condomínio, com ajuda de três tias do lado pai: a tia Sabedoria e as outras duas.


«Alfama não cheira a fado / Mas não tem outra canção», cantava Ary. Abril cheirará a Junho. Junho cheirará ao tio Zé, à sua esposa e ao seu sogro! Que assim fosse...


segunda-feira, 11 de março de 2024

Democratas-de-Bem querem Metecos



Nas últimas horas creio que ninguém que lê estas palavras teve a oportunidade de não sentir o travo amargo de alguns arautos da democracia a quase sugerirem o retrocesso do sufrágio para não universal.

Não estou particularmente feliz com os resultados destas eleições legislativas, admito. Apesar disso não me sinto no direito de justificá-los pela inferioridade do discernimento dos outros, em relação ao meu. Também não consigo culpar a justiça pela vontade popular.

No primeiro caso dizer que partidos como o Chega, no qual não me revejo, são suportados pela ignorância de alguns cidadãos é um insulto indisfarçável e gratuito a mais de 1 milhão de eleitores portugueses. Não estou confortável em arrotar essa injúria. Fazê-lo faz de quem o faz pouco mais do que um arrogante auto-proclamado tolerante só para ter o título e a pinta.

Qual é a solução para isto? Criar duas equipas, a “nós” e a “vós” como na sueca, em que a primeira está qualificada e é bem-vinda às mesas de voto, em detrimento da segunda que só prejudicará o país e a democracia? Voltamos para a realidade helénica? Lá havia uma primeira divisão: cidadãos e os outros. Os outros eram os escravos, as mulheres e os metecos. Ao contrário dos escravos e das mulheres, os metecos gozavam de muitos dos direitos dos cidadãos mas eram vedados da participação política. É isso que queremos?

Ou a solução passa pela educação e pela promoção da literacia política? Temos percorrido esse caminho, também. Não sei se, nessa matéria, houve algum outro momento da história portuguesa em que aparentava existir tamanho esforço público para se conseguir progredir.

Há uma pergunta que podemos fazer. O que se fará quando, apesar da máxima educação e literacia política, a vontade popular der sinais de sede de uma mudança tão estranha que os democratas-de-bem, tolerantes-de-algibeira, não a apreciem ou a temam? Culpa-se a justiça? Vêm os metecos? Que atrevimento julgar-se que, em democracia, pode haver espaço para ideias muito diferentes das nossas… É um escândalo…

Culpa-se a justiça, um parágrafo, um presidente, culpa-se até o comprimento da saia da professora de filosofia que quando falava de liberdade levava atenção dos alunos para outro lado.

Culpa-se a justiça! A senhora não tinha nada que fazer! Fez aquilo! Caiu o governo, perdeu-se uma determinada maioria, perdeu-se a esperança… Perdeu-se a memória, perderam-se 57 governantes, mais 15 que haviam perdido antes da senhora ter margem para ter culpa.

Perderam-se, também antes, meses de aulas, anos de espera na saúde, cor nos cabelos, vidas humanas, sonhos em Portugal, confiança no futuro, tantas outras coisas que, escritas, inverteriam o sentido desta mensagem.

Como seria se a senhora tivesse alguma coisa que fazer e não houvesse parágrafo, nem a Maldade-Fria de um presidente maquiavélico e calculista?

Talvez se perdessem além dos 57 e dos 15, mais uns quantos governantes. Talvez o descontentamento galopasse ainda mais e, em vez de um Ventura, houvesse dois. 

Se a senhora tivesse alguma coisa que fazer, os democratas-de-bem estavam tramados, a chuchar calmantes e pedir o regresso de Cristo, ou de um esqueleto qualquer.

Temo seriamente que se volte a desejar metecos. Temo que os democratas matem a democracia, antes de compreenderem que ela é aquilo que os “nós” e os “vós” quiserem como mesa, para se continuar calmamente a jogar à sueca, a comer, a viver e a procurar a felicidade e o progresso. 


Ontem, no último domingo de lua-nova antes do equinócio da primavera de 2024, Portugal foi a votos para redistribuir os assentos do Parlamento Português. Uma curiosidade coloca simbolicamente este sacro ofício da democracia laica portuguesa em oposição ao sacrifício Pascal que se celebra, no mesmo país, invariavelmente no primeiro domingo de lua-cheia, após o equinócio da primavera.

«Começou ontem a contagem decrescente para o final da legislatura que ainda não teve início» e começou com uma clara e incontornável vitória. Ganhou a participação popular. Ganhou a democracia, que é, entre os sistemas que conheço, o que mais facilmente oxigena corpos estranhos que podem desejar, mais do que qualquer outra coisa, a sua atrofia. Corpos esses que podem existir da esquerda à direita. Queiramos ou não, e ideias à parte, ganhou a democracia portuguesa, no ano em que assinala 50 anos da sua existência.

Um nervoso lerá nas minhas palavras uma apologia qualquer que pode ser espelho de um desejo profundo que dorme atrás dos seus olhos. Essa apologia não existe, nem nas minhas ideias, nem nestas palavras. Podemos discutir crenças e visões, preferências ou o seu contrário, na distribuição dos votos pelas diferentes candidaturas que constavam nos boletins que ontem foram preenchidos por um número historicamente generoso de eleitores portugueses. Podemos ainda estar individualmente descontentes por certos crescimentos e minguamentos de menos certos grupos parlamentares naquela eleição de domingo de breu.

Além disto, e em relação ao ato eleitoral, há a alegria e o desespero, o divórcio das expectativas com os resultados. Há também os “profetas” que precisam de ter sempre razão antes do tempo, como se a sua vida e alegria em estarem vivos dependessem disso.

Eu vejo que há uma ampulheta que não folga nem dorme, que não pode ser atrasada, podendo, contudo, ser tirada de cima da mesa para dar lugar a outra que recomeçará a cascata de areia, ou até o seu fim, ou até ter um fim igual à hipotética antecessora.

Faltam 20 dias para o clímax do culto ao coelho da Páscoa, podem faltar mais ou menos para magia democrática sacar da cartola, ao luar, uma coelha prenha de soluções ou problemas que viverão além de uma ampulheta. 

sexta-feira, 8 de março de 2024

Feliz dia às Mulheres


Nesta data estabelecida como o Dia Internacional da Mulher desejo a todas as mulheres que conheço um dia bom e feliz. Acima de tudo bom, feliz e fecundo de liberdade. Que possa ser um marco no ano que, como todos, é delas.

Desejo também que possam ser quem são e querem ser, mais do que serem cada vez mais iguais aos homens.

Diz a minha experiência que pode não ser o ideal desejar ser igual aos homens. Até porque a esmagadora maioria dos homens que conheço não tem uma vida facilmente cobiçável.

Narrativas livreiras e politiqueiras à parte, parece-me que o bom da mulher está em ser mulher, e a mulher que deseja ser. Longe disso está a tentação de procurar ser quem não se quer ser, ou julga que se quer só porque a igualdade - que eu defendo com tudo o que posso - está pintada numa ratoeira qualquer no topo de uma escada que conduz à “morte” igual à de tantos sonhos e homens que não se realizam ou cumprem.

VIVAM AS MULHERES, A SUA ALEGRIA E O SEU PROGRESSO! As que existem e que o são! Porque o resto é só degraus com madeiras, molas, tintas e “morte” para a vida que poderia ter vindo a ser e nunca veio, nem nunca a foi. 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A Direita dos Triângulos Amorosos

imagem adaptada (cortada e desfocado o rótulo) do jornal tornado (https://www.jornaltornado.pt/queima-das-fitas-coimbra-urgente-repensar/)
imagem adaptada (cortada e desfocado o rótulo) do Jornal Tornado
 (https://www.jornaltornado.pt/queima-das-fitas-coimbra-urgente-repensar/)


A fonte dos amores foi a escola de muitos dos nomes que conduziram o país que temos. Foi-a tão intensamente, que agora brotam fontes de amor nos corações fofinhos dos democratas-do-dia. Da esquerda à direita, vamos assistindo a encontros e desencontros, a traições de esquina, a mentiras da avozinha. Isto está uma cantiga de um trovador bêbado e apaixonado.

Mais à direita temos o amor platónico da saudade, com uma mesa dos três pés do tempo dos avós de muitos que agora votam. Não bastasse esse menage, evidentemente digno e respeitável, temos agora um quarto apaixonado que não aceita o não social democrata, e canta ao Mondego os amores que se lhe brotam do peito pela nação e pelos “portugueses de bem”. Há ainda um quinto, mais bem trajado, contemporâneo e neo-qualquer-coisa, que apesar de não cantar ao luar os seus amores, tem como pretendente, o amor do anterior. Fonte dos amores, que fizeste os Homens de um país, fazes agora do país uma cama. Há que contemplar no orçamento a equipa de higiene, porque mais um pouco e cheira muito mal, a podre – basta ver que uma das pernas da mesa tríplice original já caiu, só que ainda não sabe.

Com a evolução, vamos ter, certamente, serenatas a três e de quatro.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Natal Envergonhado



Já não há Natal.

Há outra coisa qualquer.

Boas festas, não têm mal:

Têm sacos, bytes e colher...


Há uma vergonha reprogramante,

Carnavalizada de tolerância,

Que sobrepõe num instante

O curto-prazo masturbado,

Agenda da gravatânsia,

À história e legado

Que perderam rosto para «um infante».


Já não é Feliz Natal.

São boas festas!

Já não é cerimonial

É, agora, social, 

Pseudo-inclusivo,

Já que a forma como eu vivo,

Com likes e votos atestas.


Já não há o Menino,

Há meninxs coitadinhxs das redes.

Já não há Virgem,

"Esse produto machista" das teses.

Step-dad há, mas é diferente.

Burros e vacas ficam na minha mente

Porque houve tempo na democracia

Em que qualquer um podia

Opinar e ser origem

De um diálogo benino.


Já não há Natal.

Há Festas!

«Não sejas radical,

Tens de abrir a quem não crê»

Já que todo o mundo vê

Cifrões em datas destas.


Já não há igrejas,

Há infraestruturas.

Já não há Igrejas,

Há memórias futuras.

Já não há moral,

Há conselhos de ética.

Doutrina castrante e patética,

Que encanhota Portugal.


"Não sejas assim, isto é Global,

Desejável e normal.

É natural da evolução,

Do progresso da nação."

Achas que alguém diria que não,

Ao 25 de Abril ou Ramadão,

Se tornarem símbolos do que não são,

Ou com nomes de reinvenção,

Em nome do tão vão

Voto ou tostão?


Não é que defenda o Natal,

Ou que não defenda.

Não é que me atravesse pela Igreja,

Pela fé, religiões ou tradição!

É por moral, ou ética sem conselho,

Das quais me orgulho desde fedelho.

Isto não é normal!

Não está à venda!

E por muito que a doutrina o deseje, e deseja,

Não está à venda. Para mim não!


Boas festxs, e tal...

Que possa ter significado devolvido.

Que se possa desejar, destemido,

Um Santo e Feliz Natal.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Matança Asseada



Entardecia morrinhenta
A quinta ociosa de outono
Com cheiro de dor violenta
E fé de um qualquer abono.

A besta sem noção de existir
Olhava o firmamento cinzento
Qual faca haveria de vir
Exorcizar o sangue barrento.

Porque choras Ana Maria?
É destino do animal.
«Quem dera neste Natal
Houvesse amnistia.»

Burro, besta pior que a outra,
Acudi-o no sacrifício.
Chegasse então o solstício
Para poder celebrar.

Dei banho ao suíno,
Sujo da própria lama
Com a que fez a sua cama
Nauseabunda de cretino.

Limpei-lhe os olhos para que se visse
Fugiu do espelho por meninice.
Mas aceitou ser menos porco e mais homem
No fim-de-ciclo dos que comem.

Eu que mal de mim sei
Ensinei-o de si
Ornamentando-o de rei
O melhor que consegui.

Empiriquitou-se a gorda besta,
Fugindo sempre do espelho,
Fingindo tomar de conselho
Ser um homem sem sesta.

Tremenda natureza
Que tarda mas regressa
Fez da nova avareza
Uma ponta solta com pressa.

As vestes feitas aquém da ponta
Começaram a dar de si
Avisando, o Rei, sem conta
Que a nudez vinha aí.

Nos caminhos apertados
Que o porco-rei percorria
Ramos e cardos havia
Perigosos de tão sossegados.

A verdade manifestou-se
Os caminhos se mais apertaram.
A avareza borrifou-se 
E os cardos a ponta tomaram.

Animado fuso da vergonha
Rodou de forma infernal 
Trazendo de volta a bizonha
Tarde de outono fatal.

Já sem vestes nem noção, que nunca houve,
Passeia um porco que rei-se-acha.
Fitou a lama, hesitante, cheirou, babando, a couve.
Estava consumado, e perdida a tarraxa.

Deixei-o ir, ao seu destino,
Já que de mim não precisava.
E viu-o ir em desatino
Para matança que começava.

Tanto lhe mostrei o espelho
Que me esqueci de o olhar.
Tanto lhe dei o conselho
Que não parei para me escutar.

Agora também sujo, molhado e vivido
Me encontro a repensar.
Usei mais olho e menos ouvido
Julgando poder ajudar.

A minha matança chegará também
Pois vem sempre que se está "velho".
A do porco é a do vintém
E ficar-se a olhar ao espelho.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Falácia Religiosa




Antes de tudo e depois do nada,
Há qualquer instante em que o que existe,
Sem saber que o faz, sem talvez,
Fazer ideia do que será saber, ou até ser,
Está ligado numa espiritualidade inata,
Numa ligação tão sútil quanto "real".
A realidade realiza-se numa ligação
Descomplicada e inevitável.

Nesse instante, o Deus ou Deusas -
Ou qualquer outra Coisa que não pode ser
Apertada dentro de uma palavra, 
Por muito bela ou por muitas que sejam -
"Existiam" - chamemos-lhe este verbo, por falta de melhor -
Numa plenitude que ainda hoje lhe colamos.
Essa "criatividade" existia aquém, nas coisas e além delas.
Perfeitamente ligada, una, mas respeitadora das
Vontades que talvez ainda, aí, não se distinguiam do impercetível.

Uma criatividade a montante de qualquer realidade ou criação,
Não nasce, digamos que é "presente" há pelo menos uma eternidade "atrás".
Desde esse passado inefável que a criação é banhada
Com tantas e tão diferentes enxurradas de religiosidades
Que todos os gostos e temores têm a solução ideal.
Mais a norte ou a sul, a este ou oeste, à frente ou para trás no tempo,
Basta procurar bem e la estará o código adequado para o efeito pretendido.

Em que momento faz sentido dizer que é necessária uma religião?
Uma religação? Religar o quê, quem a quê ou a quem?

Houve, também na espiritualidade, uma sedentarização:
Um momento que um homem ou mulher (que agora parece que deixam de existir)
Entendeu que era possível semear e colher, ou melhor,
Colher sem semear. Nesse momento percebeu que a semente
existia nos outros e que bastava escolher o ilíquido com que regar:
o medo, o desejo, o vazio... 

Essa semente que cada de nós parece ter
tem vindo a ser refém de adubos de outros.
Nesta fase, acho que vejo que qualquer aspiração metafísica,
Mais do que encontrar abrigo interesseiro,
Desencontra-se na hostilidade material,
No superavit de estímulos e soluções
Que nada mais podem ser do que um exorcismo da própria alma.
Uma amputação a sangue frio.

Parece-me que entender que é necessária uma religação
É tão perigoso quanto achar que não há, nem é necessária
Ligação.

Ainda acredito.

Acredito que ligação existe apesar das vontades polarizadas.

Ligação tão grande que dificulta o seu próprio entendimento.
Tão presente e constanto que não se percebe a existência.
Tão simples e natural, que nem que queiramos não é possível o shut down.

Nem religar, nem desligar, em achar que ela não existe.
Viver, pausar e saborear com um palato que não sei se sabes que o tens.


domingo, 24 de outubro de 2021

Perdão Pagão

Mal que me fazem é cruel
Ante minha perfeição que se pinta.
Temente sou, por isso uso o perdão!
Esquecer é coisa distinta!
Uma coisa é mostrar mel;
Segunda é despir minha ilusão...

Como amar sem passado,
Iniciando uma nova história?
Narciso mato, escudo pesado...
Cavo sua lente que espelha glória.
Ora me vejo nu e descomplexado.

sábado, 23 de outubro de 2021

Deus Assessorado


Querido supervisor,

Escrevo-te enquanto escuto o dilúvio
A acontecer no autoclismo ao lado.
Creio que não é lugar menor do que qualquer outro:
Também tem paredes, janelas, cerâmicas e odores alheios.

Um comunista contou-me que não existias, coitado.
Mal sabe ele que está cheio de razão.
Esse verbo - existir -, como todo o inventado,
É escasso, como é o primeiro do primeiro de João.

Na última carta que te enviei, à qual também não respondeste,
Perguntava-te a respeito dos teus subalternes deprimentes
Que julgam conhecer-te melhor do que eu. Só pode ser fruto deste
Stress pós-nomádico de espacialização e trocas comerciais.
Não é por conhecerem livros escritos por homens como eu,
Que te sabem melhor do que eu te sei.

A vidente de lá de baixo jura que fala com os mortos!
Esta noite volto lá, mas para vê-la laborar - diz que é mais barato.
Hás-de dizer-me o nome do primeiro palhaço que usou
Como moeda de troca o "conhecer-te", o "saber o queres".

Foi esse sacana que inventou a religião. Que nos convenceu
Que era possível desligarmo-nos de ti; que o fizemos;
E que tínhamos de nos religar. A ti?
Nem sabes responder a cartas... Esse aldrabão foi pioneiro.

Agora tens mais tipos de seguidores diferentes do que plásticos no mar.
Diz-me lá: para que queres isso tudo? Gostas? É bonito? É prestigiante?
Um bando de gajos certos, com a verdade no bolso e a mentira na cara,
À batatada pelo domínio da sua mentira sobre as dos outros... Que bonito...

Caeiro - outro que julgava que te conhecia - acertou naquela da
"Religião Universal que só os Homens não têm". O tipo está certo...
Que necessidade tem um gato de se religar a ti? O gato que nunca se desligou...
Que merda somos nós a mais do que o gato para nos conseguirmos desligar de ti?

Por falar em merda... Já tenho as pernas dormentes...
O engenheiro das loiças também não saberia evitar estas coisas?
Deve ser outro que anda a fazer dinheiro com o que não domina...
Vê lá se me respondes, só a dizer se estás bem.
Olha que os políticos que respondem no face estão na moda.

P.S.: Avisa o teu subalterne da paróquia ao lado que já o topei... Ele que se ponha fino!
Prefiro a vidente, é mais cara mas sempre me dá resposta às minhas necessidades.

E.D.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Egos travestidos

Eu sou da cultura! Eu sou do comum!
Eu sou da causa que me engrandece!
Eu sou teatro! Eu sou o número um!
Eu sou do Estado que em mim padece!

Eu sou dos bons! Dos progressistas!
Eu sou de bem, eu sou filantropo!
Desde que hajam fotos e revistas!
Eu sou o que os outros narcisistas
Precisam de ver em mim para estar no topo!

Eu ajudo este, eu ajudo todos!
Eu sou um pobre rico, acumulo a rodos!
Eu sou a terra! Eu sou o sol dos tolos!
Eu sou o dos doces e o dos bolos!
Eu sou o tempo que não tenho para dar.
Eu sou expectativa viúva, sem par.

Venham adorar-me pelo que digo ser!
Venerem-me pelo bonitinho que fabrico!
Endeusem-me os burros sem poder,
Coroem-me com um penico!

Eu sou o que tiver de ser
Para continuar a poder
Viver esta mentira.
Negligência, desprezo e ira 
Ao próximo que não quero servir,
De quem me sirvo, até subir.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Mar Seco



Folia em torno de cada pelo arrepiado,
Tão tenso que me dói no passar da camisa,
Depois de ser banhado pelo mar não molhado.
Mar é musa sua e em si navega - em sua secura...
Musa que cantas, assovias nas janelas mal fechadas.
Marinheiros encantados são os medos do som da brisa
Pela janela mal fechada. Aberta... para a noite escura.
Que entrem em ti as ondas-rajadas, as redes armadas,
A esperança de pescar sonhos neste mar que não nos molha.

Água que não tens, não dá de beber à terra, nem aos bichos.
Mas trazes embrulhado, no nada que se empurra,
O passado das coisas, as dores, vitórias esquecidas e cochichos!
Trazes os perfumes das flores beijadas pelas abelhas, de quem temos tanta pena,
E que, sem terem penas, esvoaçam e namoram, sem vergonha, cada flor enquanto fitam outra.
Também tu, mar seco, escondido, esvoaças e fazes voar as, como tu, secas folhas
Para o meio de um Outono teu, castanho, amarelo, e de todas outras cores que não podes ter.
Porque tu não tens cor. És um mar teimoso, incompleto porque não molhas,
Mas senhor porque desprezas a gravidade que te puxa - também a gravidade do que fazes.
É... Tu és um mar irreverente... Descontente consigo mesmo, por te julgares incompetente.
Não é por seres seco que és menos que qualquer outro! Era o que faltava!

Conheci-te na praia em que nasci, e me refugio ainda hoje.
Todos te julgavam mas nem pensavam que todos se banhavam, mais em ti do que no outro.
Namorei-te na Peninha de Sintra, na Bandeira da Boa Viagem.
Invades-me o dia no choupo resistente do vizinho da frente.
«Já chove?» «Não! É o mar que não molha a agitar as folhas do Choupo na sua corrente.»
Abraças-me na minha pequenez enquanto me entras pelas costuras da roupa,
Pelas fissuras da raiva - E refrescas-me, embalas-me, ensinas-me que não é preciso molhar,
Que não preciso ter uma cor, que não é preciso viver num oceano para se ser mar.
Para mim és mar de um mundo todo, leve e barulhento, refrescante e rabugento.

Quem te vai dominar?
Eu não vou, nem tento!
Já te digo, amigo vento:
Tu não molhas mas és mar.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Conversinha fraterna


Espasmos pulmonares desvairados
Irritam as cordas que vocalizam,
Ressoando na cavidade que obedece.
Por vezes palavras - nados inanimados -
Cujo som não soa ao que parece.
Gargalhadas mecanizadas que nos pisam
Enquanto seres pensantes, que aí não somos.
Longas horas de fraternidade bonitinha,
De conteúdo parco e por culpa minha
Que, ao vomitar o vazio da razão,
Passo bela tarde como se não
Sofresse da natureza que dispomos.


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Nudez Primeira



Rodeia-me o tempo, que é redondo
E foge-me o chão em que me escondo.
Cores de um arco-íris cansadas
Já não pintam qualquer história.
Restam-nos as verdades passadas
Sem pitada, a mais, de glória.
 
Olhos e espelhos, desterros meus,
Máquinas loucas de alienação.
Já não sei se fui, se sou ou não, 
Tampouco se virei a ser ilusão.
Tornarei, sem dúvida, à nudez
Inequívoca que se fez
Ao ser não sendo.
Um nada crescendo,
Que muda em espiral na mesma coordenada.
Um tudo que se faz nada,
De um nada que se faz Deus.
  
O tempo achatar-se-á fugitivo,
O chão ter-me-á em seu umbigo.
Não verei a luz, nem suas cores,
Não restará história nem andores.
Mas haverá sempre um retorno
À nudez primeira, sem adorno,
Ao recomeço libertador e primitivo.

domingo, 18 de julho de 2021

Velho Medo


Que estratagema corriqueiro,
O de agir como o primeiro
Iluminado e único da companhia.
É tolo achar o outro assim
Dormitando sobre o bom de mim,
Espelhando o que me arrelia.

Esta realidade aparente,
Anula e condena gente
A ser somente o que alguém quer.
Sem pensar, por um segundo,
Que não há outro alguém no mundo,
Que há outro homem ou mulher.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Amnistia às Bruxas


Em tempo de Halloween, o paganismo e o capitalismo estão em festa. As bruxas absolvidas  podem sair à rua na noite de 31 de Outubro, ou podiam…

No velho Estado Novo, tínhamos bufos nos cafés, nas ruas e até em casa. Um regime policiado, assumido, tóxico e castrante de liberdade.

O escândalo, hoje, perdeu o rosto, é certo, mas nem por isso perdeu a força. Se antes existiam informadores do sistema camuflados em muitos lados, hoje temos o próprio sistema camuflado a agir como censura dentro dos medos de cada um de nós.

O seguidismo e o poderio lançaram a rede do politicamente correto, de um novo senso comum acéfalo e apapagaiado.

Quem não alinha no politicamente correto de hoje, profundamente ideológico, é um reacionário, um conspirador, um alvo-a-abater. Já não com as técnicas de tortura do antigamente. Hoje vivemos a anulação individual e a exclusão social como arma do próprio regime, sem necessidade de PIDE ou inquisidores credenciados, mas com o mais perigoso dos vírus em democracia: a desinformação profunda que confunde e distrai o eleitorado.

As bruxas eram pensadoras por conta própria, investigadoras de si mesmas, que, em harmonia com as leis naturais, desenvolviam ferramentas e meios para o progresso da sua liberdade e melhoria da qualidade de vida, sua e dos seus. Essa independência, essa diferença, deu-lhes o bilhete para a solidão discriminadora.

Que as há, há, e há dentro de cada um que busca o seu próprio caminho.

Em plena pandemia, a criançada fantasiada de bruxinhas não poderá sair à rua, assim como as originais, que cada vez menos saem, se veem ou ouvem. A magia da democracia corrente, que procura extinguir as bruxas e manter todos os “santos”.

De Deus às bruxas, a amnistia, já que o homem grande continua a querer “queimá-las”.


quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Por que amas?


Porque de ti esperas
O que ainda não és.
Porque de ti dás
O que ainda não tens.
Porque de ti extrais
O tudo que precisas.

Ainda assim não te guardas,
Não te sentas, nem respiras.
Não te escondes além fardas,
além merdas, além mentiras.

Amas porque ouviste que a vida é perecível.

Quem to disse foi ele.
Sacana que se mata para viveres até um dia.
Num voo de borboleta:
Instantes de ilusão para consumar a magia!

Sacana muscular e metafísico,
Perverso que bate e repete: "MORTAL!".
Aparentemente narcísico,
Mas porta para a entrega total...

Serás tu, coração simplório,
O responsável pela minha anulação?
Ou apenas meu bode expiatório,
Para um erro com perdão?

Onde está o equilíbrio entre as coisas?

Amor-serviço cheira a incenso,
A velho e naftalina!
Amor-próprio cheira a mau-senso,
A solidão cretina!
Amor isto! Amor aquilo!
Sem definição nem asilo,
Sem liberdade, nem sina!

Eu escolho um outro amor!
Um amor dentro de mim,
Mas para alguém!
E que venha a dor,
E, já que terei fim,
O prazer também.

Por que amas tu, afinal?
Por quem amas tu?
Para que amas?
Que amas?
Amas?

Não sei o que é o amor.
Mas gosto da ideia de poder tê-lo.

Coisa nenhuma que não seja se pode ter.

Poderá o amor ser ele próprio em algum momento?
Não creio que um vocábulo possa ser um sentimento;
Nem que um sentimento caiba em caracteres.
Sê-o tu! Antes de o teres! Se quiseres...

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Leis no tempo II


A lei é a mãe do tempo e do espaço,
Esquadria do esquadro e compasso,
Incubadora do teu e meu Deus.
Primeiro leite do primo arquitecto
Que vai crescendo e mantém em decreto
Que: desse leite vão beber os seus.

Sozinho com duas pedras da lei,
Viu-se um homem que podia ser rei
E foi Rei servidor da sua gente.
Da pedra passou ao papel
Com engenho e trabalho fiel
Para que nada fosse diferente.

A perfeição tende para o caos,
O que não faz dos homens seres maus
Mas saibamos que somos imperfeitos.
Na tentativa de ser superior
Foi o papel veio o computador;
De dez deveres fizemos direitos.

Do infinito para um e zero,
Fizemos da lei um mero tempero
Para alguns apetites endeusados.
Atentemos no passo que se segue
Porque nenhum cumandante consegue
Ser comandante sem haver soldados.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Passos perdidos


Eu vejo um farol que não chega.
Remo cego por aquela luz que não a é,
Seduzido por uma esperança de entrega.
E o tempo chega, numa lancha sem ré.