Nas últimas horas creio que ninguém que lê estas palavras teve a oportunidade de não sentir o travo amargo de alguns arautos da democracia a quase sugerirem o retrocesso do sufrágio para não universal.
Não estou particularmente feliz com os resultados destas eleições legislativas, admito. Apesar disso não me sinto no direito de justificá-los pela inferioridade do discernimento dos outros, em relação ao meu. Também não consigo culpar a justiça pela vontade popular.
No primeiro caso dizer que partidos como o Chega, no qual não me revejo, são suportados pela ignorância de alguns cidadãos é um insulto indisfarçável e gratuito a mais de 1 milhão de eleitores portugueses. Não estou confortável em arrotar essa injúria. Fazê-lo faz de quem o faz pouco mais do que um arrogante auto-proclamado tolerante só para ter o título e a pinta.
Qual é a solução para isto? Criar duas equipas, a “nós” e a “vós” como na sueca, em que a primeira está qualificada e é bem-vinda às mesas de voto, em detrimento da segunda que só prejudicará o país e a democracia? Voltamos para a realidade helénica? Lá havia uma primeira divisão: cidadãos e os outros. Os outros eram os escravos, as mulheres e os metecos. Ao contrário dos escravos e das mulheres, os metecos gozavam de muitos dos direitos dos cidadãos mas eram vedados da participação política. É isso que queremos?
Ou a solução passa pela educação e pela promoção da literacia política? Temos percorrido esse caminho, também. Não sei se, nessa matéria, houve algum outro momento da história portuguesa em que aparentava existir tamanho esforço público para se conseguir progredir.
Há uma pergunta que podemos fazer. O que se fará quando, apesar da máxima educação e literacia política, a vontade popular der sinais de sede de uma mudança tão estranha que os democratas-de-bem, tolerantes-de-algibeira, não a apreciem ou a temam? Culpa-se a justiça? Vêm os metecos? Que atrevimento julgar-se que, em democracia, pode haver espaço para ideias muito diferentes das nossas… É um escândalo…
Culpa-se a justiça, um parágrafo, um presidente, culpa-se até o comprimento da saia da professora de filosofia que quando falava de liberdade levava atenção dos alunos para outro lado.
Culpa-se a justiça! A senhora não tinha nada que fazer! Fez aquilo! Caiu o governo, perdeu-se uma determinada maioria, perdeu-se a esperança… Perdeu-se a memória, perderam-se 57 governantes, mais 15 que haviam perdido antes da senhora ter margem para ter culpa.
Perderam-se, também antes, meses de aulas, anos de espera na saúde, cor nos cabelos, vidas humanas, sonhos em Portugal, confiança no futuro, tantas outras coisas que, escritas, inverteriam o sentido desta mensagem.
Como seria se a senhora tivesse alguma coisa que fazer e não houvesse parágrafo, nem a Maldade-Fria de um presidente maquiavélico e calculista?
Talvez se perdessem além dos 57 e dos 15, mais uns quantos governantes. Talvez o descontentamento galopasse ainda mais e, em vez de um Ventura, houvesse dois.
Se a senhora tivesse alguma coisa que fazer, os democratas-de-bem estavam tramados, a chuchar calmantes e pedir o regresso de Cristo, ou de um esqueleto qualquer.
Temo seriamente que se volte a desejar metecos. Temo que os democratas matem a democracia, antes de compreenderem que ela é aquilo que os “nós” e os “vós” quiserem como mesa, para se continuar calmamente a jogar à sueca, a comer, a viver e a procurar a felicidade e o progresso.
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